Por Jânsen Leiros Jr.
Revisado e ampliado em 21/04/2024
"O livro de Gênesis ocupa um lugar central na Bíblia, pois nele encontramos as raízes de toda a revelação de Deus. É aqui que somos apresentados aos fundamentos da fé, às origens da criação e da humanidade. Mesmo para aqueles que não compartilham da mesma fé, Gênesis continua sendo uma obra de profunda importância, pois oferece uma narrativa que busca explicar as questões fundamentais da existência humana e do universo. Suas histórias, embora simbólicas em muitos aspectos, lançam luz sobre as origens da moralidade, da ética e da busca pelo significado da vida. Portanto, independentemente de nossas crenças ou nível de conhecimento científico, Gênesis permanece como um texto fundamental que merece nossa atenção e reflexão."
Dogmática Eclesiástica: A doutrina da Palavra de Deus; Karl Barth - Trecho adaptado do capítulo sobre a inspiração e autoridade das Escrituras, sem uma página específica fornecida.
O livro de Gênesis é um dos mais lidos e mais
comentados textos da Bíblia. Não só por ser o seu primeiro livro, mas também e principalmente
por trazer a história das origens do universo e da humanidade. Cientistas, especialistas
e estudiosos das mais diversas disciplinas do conhecimentos humano, oficiais religiosos,
gente comum e curiosos, já empreenderam ao menos uma leitura de suas páginas,
instigados pelas mais variadas pretensões. Uns as leem para refutar as afirmações
que consideram lendárias. Já outros o fazem repetida e incansavelmente, para reafirmação
de crenças e inspirações à alma. De um jeito ou de outro, todo mundo um dia já leu
ou ainda lerá o livro de Gênesis.
A
atração
As questões que provocam fascínio e interesse
pelo texto de Gênesis, porém, vão muito além da mera confrontação, curiosidade
ou afirmações de fé. Sua linguagem, seu ritmo narrativo e suas exposições
simples e diretas dos fatos, fazem da leitura desse livro uma aventura
reveladora, repleta de mensagens facilmente compreendidas no âmbito de seu
próprio e bem elaborado contexto. Não obstante, há incansáveis esforços de um
leque considerável de militantes de ideologias místicas e de teorias exotéricas,
que buscam identificar e decifrar supostos enigmas e segredos, ocultos nas
entrelinhas e em códigos subliminares, que acreditam cuidadosamente escondidos em
suas páginas[1].
O texto de Gênesis narra primordialmente a
criação do universo e da humanidade, as consequências por esta humanidade ter
dado as costas ao seu criador, e na parte final, a criação de uma nação que
reservou para si, através dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó. Em nenhum lugar
no livro, porém, encontraremos qualquer explicação para os acontecimentos,
escolhas ou atitudes dos personagens envolvidos na história. Em contraste com
outros textos onde normalmente se encontra um discurso apologético sustentando
suas cenas, em Gênesis a narrativa corre como afluentes que desembocam em rios
cada vez mais caudalosos e rápidos. Há uma fluência flagrante de uma narrativa
que caminha do todo para o particular, e do caos para a ordem.
Nessa fluência observa-se que cada componente
cênico sustenta fatos e consequências. Podemos destacar que cada acontecimento contato
conduz ao seguinte, e a história se desenrola como uma previsível sucessão de
instantes necessários e apropriados, como se isso aqui só pudesse
desdobrar-se inevitavelmente naquilo outro. Dessa forma, embora tenha
seus núcleos históricos bem delimitados, o livro de Gênesis dificilmente teria
sido comporto separadamente, posto que forma claramente uma obra única,
abrangente e auto sustentada.
Pertinências
Literárias
Há outros aspectos relevantes na narrativa de
Gênesis, que precisam ser destacados para melhor compreensão de seu conteúdo e
formato narrativo. Tais aspectos o distingue, tanto das demais cosmogonias
existentes à época, quanto das tradições orais presentes em outras
civilizações, que especulavam sobre as origens do universo, da humanidade, e de
seus povos:
Ação x Argumentação
São os fatos e não os conceitos que conduzem
o leitor através do livro. Não há qualquer argumentação ideológica. Certas ou
erradas, coerentes ou não, os acontecimentos, as atitudes e suas consequências
são, por si mesmas ou por seus conjuntos, a mensagem a ser transmitida, sem que
para sua fixação haja qualquer explicação complementar. A narrativa revela a
ação de Deus e dos personagens envolvidos em cada trama sequenciada. Talvez o
autor tenha em mente que determinados conceitos implícitos em suas histórias
sejam irrefutáveis, ou que o questionamento sobre suas pertinências seja
irrelevante para o seu propósito. Por isso não há argumentos, mas apenas narrativas.
Propósito x Acaso
Por falar em propósito, o conteúdo de Gênesis
se isola do lugar comum, ao apresentar um Deus que quis criar, revelando
implicitamente a existência de uma vontade criadora. Comumente aceitas, as
cosmogonias contemporâneas relatavam a criação como consequência acidental ou
efeito colateral de um ou mais acontecimentos. Nunca como uma ação planejada e
pretendida, elaborada para um determinado fim.
Personagens e Desenvolvimento
Os personagens de Gênesis são vívidos e
complexos, e o livro retrata seu desenvolvimento ao longo das histórias. Desde
Adão e Eva até José e seus irmãos, cada personagem passa por jornadas
individuais de crescimento, desafio e redenção, contribuindo para a riqueza da
narrativa como um todo.
Linguagem Poética
Em muitos trechos, o livro de Gênesis utiliza
uma linguagem poética e evocativa para descrever os eventos e cenários. Isso
adiciona profundidade e beleza à narrativa, permitindo que os leitores se envolvam
emocionalmente com as histórias e seus significados.
Interconexão Teológica
Gênesis estabelece importantes temas
teológicos que ressoam ao longo de toda a Bíblia, como a criação, a queda, a
promessa messiânica e a providência divina. Esses temas fornecem uma base
sólida para a compreensão da teologia bíblica e ajudam os leitores a entenderem
o contexto e a importância dos eventos que se seguem nos livros subsequentes.
Tanto as ações objetivas de Deus quanto o seu propósito criador, serão relembrados em diversos trechos da Bíblia. Isso demonstra que a narrativa de Gênesis é fundamental para o conhecimento de Deus. O livro nos apresenta um Criador que se relaciona com sua criatura. Ele não é um deus imaginado ou uma energia cósmica. Ele fala, ouve, sente e interage com o universo e com a humanidade. Seu envolvimento com sua criação é tão intensa, que Ele cria, sustenta, adverte, protege e a redime. Sendo o primeiro dos livros de uma biblioteca cujo tema central é a história da salvação da humanidade, Gênesis sustenta e lança as bases sobre as quais todo o conjunto da Bíblia se apoiará. Nele, Deus dá início à redenção da humanidade desde o Éden.
Composição e
autoria
Relativamente a sua composição literária, é
amplamente aceita a tradição que aponta Moisés como autor do livro. Algumas
teorias, porém, sugerem que o texto de Gênesis é predominantemente formado de
lendas nacionais de Israel. Tal sugestão se baseia em outra teoria analítica,
que aponta para diferentes e distintos documentos na formação do livro de
Gênesis como o conhecemos. Segundo esses críticos, o livro seria um harmonioso
conjunto desses textos, estruturados para terem sentido narrativo e sequência
cronológica. E já que estamos, mesmo que rapidamente apresentando o livro como
uma obra literária, penso que seja necessário detalharmos esta questão, sob
pena de sermos negligentes com o interesse dos leitores.
Um elemento importante que podemos
acrescentar à discussão sobre a composição e autoria do livro de Gênesis é o
conceito de fontes documentais que falamos acima. De acordo com a hipótese das
fontes documentais, o livro de Gênesis, assim como outros livros do Pentateuco,
foi composto a partir de uma combinação de diferentes fontes escritas que foram
compiladas e editadas ao longo do tempo.
Essas fontes documentais, frequentemente
identificadas como Javista (J), Eloísta (E), Deuteronomista (D) e Sacerdotal
(P), são caracterizadas por estilos literários, vocabulário e temas distintos.
Por exemplo, a fonte Javista é conhecida por usar o nome divino " יהוה[2] - Yahweh" - ou "Javé" em
português, enquanto a fonte Eloísta utiliza o termo " אֱלֹהִים - Elohim" para se referir a Deus.
Essa abordagem da composição do Gênesis sugere que o livro foi resultado de um processo editorial complexo, no qual redatores ou editores compilaram e combinaram diferentes tradições e textos escritos para criar uma narrativa unificada. Essas fontes podem ter sido originadas de tradições orais mais antigas, registros históricos, lendas e mitos, entre outros.
Embora a hipótese das fontes documentais
ofereça uma explicação interessante para a composição do Gênesis, é importante
ressaltar que nem todos os estudiosos concordam com essa abordagem. Alguns
questionam a validade das distinções entre as fontes e argumentam que o texto
pode ser mais coeso do que sugere a teoria das fontes documentais[3].
No entanto, independentemente da visão
específica sobre a composição do Gênesis, o importante é reconhecer a
complexidade e a riqueza do texto bíblico e explorar suas diversas camadas de
significado e interpretação. A abordagem das fontes documentais é uma
ferramenta útil para entender a possível história editorial por trás do livro,
mas também é importante considerar outras perspectivas e abordagens
hermenêuticas na análise do texto bíblico.
Seja como for, tais teorias não inviabilizam,
nem a pertinência do conteúdo e mensagem do livro, nem a crença tradicional de
que Moisés seja seu autor, ou mesmo seu redator. Elas não anulam sua coesão de
propósito, nem tampouco seu sentido teleológico. Sua harmonia narrativa sugere
uma só regência, uma vez que seu texto se desenvolve como uma sinfonia
cadenciada do início ao fim. Ainda que o texto se baseie em diversos textos ou
em tradições orais, houve flagrante composição para que todo o material se
tornasse um único e coerente volume[4].
A crença na autoria de Moisés conta ainda com
o testemunho de alguns textos ao longo de toda a Bíblia. No Antigo Testamento
(Josué 1:7-8; 23:6; 1 Reis 2:3; 2 Reis 14:6; Esdras 3:2; 6:18; Neemias 8:1 e Daniel
9:11-13) e no Novo Testamento (Atos 13:39; Hebreus 10:28). Além disso, o próprio
Jesus fez citações utilizando Moises como fonte autoral da lei, como era
conhecido o conjunto dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento (Mateus
8:4; 19:8; Marcos 7:10; Lucas 16:31; 24:27,44; João 5:46).
Além de todas as indicações de que o
Pentateuco tenha sido escrito por Moisés, as circunstâncias históricas também
corroboram para essa aceitação. Ele era o líder nacional de Israel e comandava
um povo recém resgatado do cativeiro, acostumados com a cultura e a religião
egípcia. Ele, e principalmente ele, precisou estabelecer um registro memorial
nacional, que fosse minimamente orientador dos costumes e crenças de seu povo,
que vivia um momento de resgate de sua identidade.
De qualquer forma, nada disso nos impedirá de
empreender nossa viagem por suas páginas. Gênesis ainda é um dos mais
inspiradores livros, e pela história a fora, muitos foram os que, motivados por
suas narrativas, escreveram livros, criaram filmes e especularam sobre seu
conteúdo. E é exatamente nesse mesmo espírito de fascínio e admiração, que
iniciaremos nosso passeio pela mais emocionante e encantadora história das
origens do universo que conhecemos.
[1] Algumas
ideologias místicas e teorias exotéricas acreditam que o texto de Gênesis
contenha códigos e enigmas ocultos.
1. Cabala: Uma tradição
mística do judaísmo que interpreta textos bíblicos, incluindo Gênesis, em busca
de significados ocultos e simbólicos. Os cabalistas acreditam que o texto
contém níveis de significado mais profundos além do sentido literal, e buscam
decifrar esses significados por meio de técnicas como a gematria (atribuição de
valores numéricos às letras hebraicas) e a interpretação simbólica.
2. Alquimia: Uma tradição
filosófica e esotérica que busca a transmutação de substâncias e a busca pela
"pedra filosofal" que supostamente concede a imortalidade. Alguns
alquimistas acreditam que textos antigos, incluindo Gênesis, contenham
instruções codificadas para alcançar esses objetivos, interpretando os
elementos e símbolos do texto de maneira alquímica.
3. Teoria da
Conspiração:
Alguns teóricos da conspiração acreditam que textos antigos, como Gênesis,
contêm mensagens codificadas que revelam segredos ocultos sobre a origem da
humanidade, a natureza da realidade ou agendas secretas de grupos poderosos.
Essas interpretações muitas vezes envolvem conjecturas sobre supostos símbolos
e padrões ocultos no texto.
4. Esoterismo: Diversas tradições
esotéricas, incluindo a teosofia, a rosacrucianismo e a gnose, interpretam
textos sagrados, como Gênesis, em busca de significados ocultos e ensinamentos
espirituais mais profundos. Essas interpretações muitas vezes envolvem
alegorias, simbolismos e correspondências entre os textos sagrados e conceitos
metafísicos.
Essas ideologias e teorias
exotéricas são diversas em suas abordagens, mas compartilham a crença de que
textos antigos como Gênesis contêm significados mais profundos além do sentido
literal e podem ser decifrados para revelar conhecimentos ocultos.
[2] Vale lembrar
que na língua hebraica, a palavra se escreve e se lê da direita para a
esquerda. Ou seja, no sentido contrário ao do idioma português.
[3] Um autor
relevante que questiona a validade das distinções entre as fontes e argumenta
que o texto pode ser mais coeso do que sugere a teoria das fontes documentais é
Umberto Cassuto. Em sua obra "A Documentary Hypothesis and the Composition
of the Pentateuch" (ou "A Hipótese Documentária e a Composição do
Pentateuco", em tradução livre), Cassuto oferece uma crítica detalhada das
teorias da fonte documental que afirmam que o Pentateuco é uma colagem de
diferentes fontes. Ele argumenta que o texto pode ser mais coeso e unificado do
que sugerido por essas teorias, propondo uma abordagem alternativa que enfatiza
a unidade e a integridade do texto bíblico.
[4] Alguns
teólogos e estudiosos que defendem a unidade e a autoria mosaica do livro de
Gênesis e do Pentateuco incluem:
1. Abraham Kuenen: Um teólogo
protestante que, apesar de reconhecer algumas variações textuais, defendia a
autoria mosaica do Pentateuco, argumentando que Moisés poderia ter utilizado
fontes pré-existentes em sua composição, mas ainda assim mantendo a unidade e a
autoria principal.
2. Franz Delitzsch: Um teólogo e
hebraísta alemão que, em sua obra "A Nova Hipótese Sobre a Origem do
Pentateuco em Seus Efeitos na Doutrina da Inspiração" (1885), defendeu a
autoria mosaica do Pentateuco e refutou as teorias críticas de sua época.
3. Ezra H. Graf: Embora tenha
sido um crítico da Teoria das Fontes Documentais, Graf argumentou que o
Pentateuco ainda poderia ter sido escrito por diferentes autores, mas sob a
supervisão de Moisés, mantendo assim uma unidade substancial.
4. Umberto Cassuto: Um erudito
bíblico judeu que rejeitou a Teoria das Fontes Documentais em favor da unidade
do texto, argumentando que o Pentateuco exibe uma coerência narrativa e
temática que sugere uma única autoria.
5. Benjamin D.
Sommer:
Um acadêmico judeu contemporâneo que, em sua obra "Revelation and
Authority: Sinai in Jewish Scripture and Tradition" (2015), defende a
unidade do Pentateuco e argumenta que a tradição judaica sempre considerou
Moisés como seu autor.
Esses estudiosos, cada um à sua
maneira, oferecem argumentos linguísticos, teológicos, históricos e
hermenêuticos para sustentar a ideia de que Moisés desempenhou um papel central
na composição do Pentateuco e que o texto exibe uma unidade que vai além das
supostas fontes documentais.